– 03 de Abril de 1990 Anno Domini – 16h02:
Berrei seu nome várias vezes, mas realmente senti que ele não estava mais comigo. De repente minha concentração foi guiada em outra direção, ou melhor dizendo, outras sensações. Começou com um leve formigar, uma espécie de comichão. Depois, foi evoluindo até sentir as primeiras lívidas sensações de dor. Eram dores físicas, do próprio corpo. Mais como um impulso do que um ato pensado, ousei em mexer o braço e o membro obedeceu. Até então de olhos fechados, abri-os e, iluminado pela luz do sol que cobria o rosto, notei que um dos meninos me puxava pelas pernas em direção às árvores que faziam as cercanias entre as ruas mais abaixo e a escola onde meu amigo estudava. Fechei-os novamente para poder pensar no que eu faria em seguida. Em tal momento, os movimentos pararam e curioso, abri os olhos para ver o que se passava em volta. Um menino cuidava de mim, mas estava visivelmente distraído prestando atenção na discussão dos outros quatro que estavam algumas árvores adiante. Eles, de certo, não esperavam que o meu amigo simplesmente apagasse e estavam confabulando algum plano para livrarem as suas caras. Quanto a mim, sentia muita raiva. Meu amigo havia sido exposto à humilhações, não somente agora, mas desde que eu o conheci. Era questão de tempo até que alguém recém-chegado percebesse como ele era e após isto, tirasse alguma vantagem do mesmo. Que instinto de supremacia é esse que desde de crianças, humanos tentam impor sua liderança demonstrando que podem abusar dos outros a seu bel prazer como atos de auto-afirmação? Timidez e inteligência eram as características mais marcantes do meu amiguinho e este era tipo de castigo era destinado à ele por ser exclusivamente assim? Se ele não prejudicava ninguém pelo fato de ser como ele era, o que ele fazia para merecer semelhante tratamento? Nada! A resposta era nada! Nada justificava, e quanto mais isso latejava na minha mente, mais o sentimento de raiva crescia. “É hoje que isto vai terminar!”, era meu único pensamento. Sei que prometi não interferir em nada, mas não aguentava apenas ver e não agir. Que me perdoassem os que estavam acima de mim, mas que se dane o futuro se eu puder e não fazer o que é certo no presente.
Aproveitei o descuido do menino que supostamente deveria ficar de olho em mim, mas que me dava às costas e peguei um galho que estava no chão. Mesmo com o corpo doendo, pus-me em pé numa fração de segundo e enraivecido ameacei perfurar o pescoço do menino visivelmente assombrado pela minha reação totalmente inesperada. A pressão do galho já arranhando o pescoço foi convincente e disse que era para ele ir em direção aos outros. Quando nós entramos no raio de visão dos demais, os murmúrios cessaram. Eu tinha a atenção de todos. Reunindo todas as forças que me restavam, vociferei: “Cansei de ser saco de pancada! Chega! Esta é a última vez que isto vai acontecer!” Em seguida empurrei o galho com um pouco mais de força e o menino soltou um grito de dor. “Se vocês não pararem de me perseguir, vou atravessar esse galho neste miserável e vou pegar vocês um a um… mas não vai ser hoje, vai ser quando vocês estiverem tranquilos, quando vocês menos esperarem…” e empurei mais uma vez o galho. Outro grunhido de dor ecoou nas árvores. O menino que estava no meu lado totalmente abalado disse: “A gente tava só brincando! Eu nunca mais vou fazer nada para ti, eu juro! Deixa eu ir embora! Por favor caras, vocês concordam, não é? Esse cara está maluco, ele está falando sério!”. Os outros podiam ver a sinceridade dos meus olhos e sentiram de fato que o destino parecido iria ocorrer a eles caso continuassem a importunar meu amigo. Então em um coro mau ensaiado todos concordaram. Afastei o galho do menino, mas não sem antes dar um empurrão que o fez bater de cabeça na árvore. Apontei o galho para todos e com o canto do olho disse apenas: “Já sabem…” e dei de costas, saindo das árvores em direção à escola. Meus pensamentos estavam focando apenas no meu amigo. Onde ele estava? Mas antes de conjecturar melhor o seu paradeiro, uma fraqueza abateu sobre mim e devo ter caído no meio do caminho.
Acordei com alguém chamando o nome do meu amigo… Em seguida, senti alguém lavando o meu rosto. Abri meus olhos e então notei que eu estava na sala da direção da escola, sentado em uma cadeira. As calças do meu abrigo estavam rasgadas na região dos joelhos e um filetes sangue que brotavam dali escorriam e mancharam parte do meu tênis branco. “O que houve contigo?”, peguntou a mulher. Recordando a maneira com meu amigo falava, disse apenas que não me lembrava, que eu devia ter caído perto da escola. “Eu mandei chamar a tua mãe”, disse a mulher. De fato, logo em seguida a minha “mãe emprestada”, entrou na sala com visível preocupação e me deu um abraço. “O que aconteceu, meu filho?”, ela indagou. Entoando as mesmas palavras que meu amigo falaria, disse “Eu não sei, mãe! Eu tava perto da escola, senti uma tontura e acordei aqui”. “Mas como tu conseguiu se esfolar tanto?”. “Devo ter caído no morro da pracinha, mãe!”, disse. A mãe do meu amigo agradeceu a mulher e fomos para casa. Durante aquela tarde consegui perfeitamente o jeito de falar do meu amigo desaparecido.
– 03 de Abril de 1990 Anno Domini – 20h45:
A noite chegou e nada do meu amigo fazer contato. Com um pensamento meio a contragosto, não pude deixar de pensar que possívelmente era a única vez que eu poderia sentir as coisas neste mundo, o cheiro do ar, o gosto da comida, o tato do corpo, embora este último ainda dolorido. Mas se meu amigo não voltasse mais? “Não pode ser”, pensei. Eu não queria substituir a vida de ninguém. Não era este o plano! Fui para a cama mais cedo neste dia. Antes de cair no sono eu pensei: “Volta amiguinho! As coisas vão ser diferentes agora, não precisa mais ter medo”. Mas ninguém respondeu… Lá pelas tantas, caí em sono profundo.
– 04 de Abril de 1990 Anno Domini – 07h37:
Acordei pela manhã e senti não comandava mais nada. Ouvi uma voz dizendo: “Obrigado! Eu sei o que tu fizeste por mim! Eu estava aqui também, mas tu não conseguia me ouvir! Ninguém suspeitou que tu não era eu…”, dando uma risada baixinha, mas sonora! “Pois é, mas vamos torcer que isso não ocorra mais, não é?”, perguntei. “Ah, claro, agora eu sei o nervoso que tu sente por apenas ver as coisas. Ontem parecia que eu estava vendo TV, mas era aquilo que tu enxergava”, completou. “Bom, te apura senão tu vai atrasar pra escola. Hoje o dia promete ser diferente.”, falei. “Acho que sim”, falou ele. “Vamos?”, disse. “Vamos!”, ele complementou…
Addendum
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Em uma sala enorme, havia uma grande mesa que atingia os limites daquela. No centro, duas figuras olhavam atentamente para uma vasilha contendo um líquido estranho. Deste líquido, imagens difusas trocavam de lugar com outras, as mais novas na superfície, enquanto as mais velhas se depositavam no fundo do recepiente. Após contemplarem por um longo tempo, um deles disse:
– Este foi um resultado interessante, diferente das outras vezes!
– Sim, de fato – completou o outro. Esta experiência promete render resultados diferentes dos demais…
– Mas aquilo que ele disse que tinha prometido não interferir, foi você que impôs? – perguntou a Voz.
– Foi.
– Mas por que?
– Porque eu queria que ele infrigisse esta regra – redargiu a outra Voz. Tinha de ser por vontade própria. Se eu dissesse que era pra ele interferir, ele poderia muito bem não fazer nada. Eu queria que isto partisse dele.
– Entendi. Parece que ele está despertando para o que ele realmente perdeu.
– Há indícios que sim – disse a outra Voz. De qualquer forma o resultado já é conhecido para nós.
– Apenas daquilo que nós não interferimos – lembrou a outra Voz.
– Isso é verdade. Ainda não consegui avaliar se neste caso nós podemos saber o resultado concreto
– Sim, eu sei – disse a Voz. Mas, supondo que neste caso nós soubéssemos, por que então olhar este momento se nós já saberíamos do resto?
– Porque parte dos nossos desígnios é acompanhar a jornada. Esta missão é garantir que tudo o que sabemos realmente aconteça…
Definição de “Doppelgänger” no Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Doppelg%C3%A4nger
CONTINUA…