Publicado por: Daniel | junho 16, 2009

Uma Jornada para Elysium – Parte 11: O Prelúdio de uma Meia-Existência

– 02 de Novembro de 1989 Anno Domini – 00h29:

Acordei no meio da noite extremamente nervoso por vivenciar um sonho confuso e via apenas a escuridão. Esperei alguns minutos para meus olhos se acostumavam, a conhecida penumbra que deriva da escuridão total quando ainda há alguma luz capturado pelo aumento da íris. No entanto, passado alguns minutos, minha visão não tinha se tornado mais clara, tudo continuava tão escuro como antes. Despertando para a realidade, descobri que meus olhos nunca se abriram. Finalmente recobrei minhas lembranças e percebi que assim como não fora um sonho, os olhos também não eram meus e por isso não obedeciam aos meus comandos. Rendido pela minha condição de impotência fiz a única coisa que era possível. Tornei a dormir…

Mesmo depois de tanto tempo, perdura essa inquietação por saber que a minha a realidade é outra, diferente de quaquer uma que alguém tenha experimentado. Sou coadjuvante de outra pessoa. Não vivo a minha vida e muito menos a de outra pessoa. Não sou personagem, sou observador. Estes dois últimos anos tem sido uma rotina, aquela que fica mais evidente quando se é criança. É quase sempre a mesma coisa. Sob aquela luz bruxelante que provêm dos raios de sol que escapam das persianas da janela, o aconchego do travesseiro confortável sob a cabeça e a temperatura confortável das cobertas, alguém nos sacode na cama para nos despertar. Geralmente a mensagem é sempre a mesma: “Acorda! Não vai te atrasar para a escola!” Depois de nos desejarmos bom dia um para o outro,  arrastamos nossa preguiça para o banheiro. Escovamos os dentes e lavamos o rosto, e por fim,  levamos o pente para o quarto. Nos vestimos e olhando pra espelho interno do guarda-roupa, arrumamos o cabelo, embora muitos fios sempre ficam desalinhados. Com a mochila nas costas, saímos de casa e vamos pra escola, que fica apenas a três quadras dali. Conversamos um pouco durante o trajeto, sempre mentalmente, afinal com pessoas circulando na rua, meu amigo não poderia ser visto como alguma criança maluca. E como um garoto de 11 anos, naturalmente curioso, os assuntos e as perguntas poderiam ser as mais variados. Nossa conexão era estranha, pois eu não sabia o que ele pensava, mas poderia sentir tudo aquilo que ele sentia e isso dava algumas dicas quando suas as respostas eram condicionadas por uma repentina alegria ou por um mau humor ocasional.

Na escola, não era nenhum segredo para mim constatar aquilo que fora demonstrado quando nos conhecemos. Meu amigo era tímido e não se dava muito bem com os colegas. Embora ele sempre fizesse um esforço para reverter essa situação, era de pouco eficácia. O fato de ser muito quieto, fazia ele ser o alvo de piadas e chacotas grande parte do tempo. Eu sentia a tristeza dele por querer ser diferente e não conseguir. Para fazer ele se sentir um pouco melhor, eu dizia que aqueles que mexiam com ele, não mereciam realmente o valor de sua amizade, que chegaria ainda o dia que ele seria reconhecido pelos os outros como um menino legal. As vezes isso o confortava, as vezes, não. Felizmente, para driblar um pouco essa tristeza, estava a legítima vontade de querer aprender. Ele não tinha grandes dificuldades com as matérias e suas notas eram sempre satisfatórias.

Ao meio-dia estávamos de volta em casa, já com o almoço à mesa. A mulher que tomava conta dele, que em nossas conversas ele se referia como a “nossa” mãe, já que estávamos juntos, era uma mulher sincera e sempre que possível, compreensiva, que realmente amava o filho e que sempre tinha um idéia interessante para expressar. O “nosso” pai já era mais fechado, imerso sempre em seus pensamentos, mas sempre muito solícito quanto as vontades e desejos do filho. Enfim, uma família estável, onde uma criança poderia se desenvolver com afetividade e responsabilide ao mesmo tempo. O apartamento aonde morávamos era de tamanho médio, embora com alguma frequência nós ouvíamos os pais deles dizendo que não havia mais espaço para colocar as coisas. Era composto de uma cozinha pequena, uma pequeninha área de lavar, dois quartos, um de casal evidentemente maior e o outro era o nosso. Para completar, um banheiro pequeno, uma sacada na qual passávamos grande parte do tempo olhando os prédios vizinhos e a vegetação em volta, palco das nossas conversas, principalmente à noite quando meu pequeno amigo queria que eu mostrasse de qual estrela eu vinha, já que eu simplesmente não conseguia e outras nem queria explicar da onde eu realmente eu vim. A principal peça do lar era sem dúvida a sala, grande e generosamente bem distribuída, aonde passávamos parte das tardes vendo TV, deitados no sofá.

Apesar da aparente quietude do meu amigo, ele possuía alguns amigos no próprio prédio, onde passava grande parte do tempo brincando após a aula. Estes já o tratavam com mais respeito e consideração. Sentia que ele brincava com satisfação e com uma certa dose de liberdade, já que ele não precisava ficar na defensiva o tempo todo. Conforme as suspeitas da Voz, ele se tornara menos agitado depois da nossa união, tanto seus pais quanto os amigos dos seus pais notaram em diversas oportunidades, a mudança. Os pais dele explicavam para os outros que isso era devido a evolução natural do menino, mais atarrefado na escola e brincando por mais tempo já que ele estava entrando na pré-adolescência, podia ficar na rua até mais tarde, porém isto não convencia os mais céticos, alguma vezes, inclusive,  sugerindo se o menino não estaria sob o efeito de alguma medicação. Já para os próprios pais, nós combinamos que responderíamos sempre que nós – ou melhor dizendo – ele já não era mais criança, que ele era mais crescido e que não tinha mais idade para ficar de molecagem, que ele tinha que se comportar como gente grande… a típica resposta de criança que acha já é gente grande sem se dar conta que continua sendo apenas uma criança.

Após a janta, olhávamos o jornal local pela TV, única parte do dia onde todos se reuniam para ficar juntos e conversar sobre o dia com algum sossego. Em seguida vinha a novela, ficávamos entretidos por algum tempo, absortos na histórias que saiam das imagens e sons que vinham do tubo e de um alto-falante pequeno que ficava no canto inferior direito. Quando acaba a novela, era sinal de fim de noite para nós. Íamos ao banheiro, escovar os dentes e em seguida, nos despedíamos com um beijo de boa noite que geralmente era dado ao pé da cama. Mas nossa noite não acabava ali. Conversávamos ainda um bom tempo sobre tudo, a maior parte do tempo uma enquete de perguntas e respostas. Certa vez ele me perguntou:

– Tu já fez alguma coisa errada na vida?
– Não que eu me lembre – respondi.
– Então por que tu estás aqui comigo? – reforçava a dúvida. É que eu acho que não deve ser legal ser você, aí dentro de alguém sem poder fazer nada, sem poder se mexer, então tu deve ter feito coisa errada. Da onde tu veio tu disse que não podia voltar. Por que te deixaram sozinho aqui? Isso só pode ser castigo! Quem foi que te castigou?

Como responder? A lógica estava a seu favor, inocentemente falando, já que ele desconhecia a complexidade da vida. Se bem que todos nós não sabemos toda a complexidade envolvida, não é mesmo? Digamos que eu era um pouco mais experiente neste assunto. Enfim, tudo o que eu conseguia dizer era:

– Eu não sei. Eu também não entendo. Um dia eu gostaria de entender… Um dia tu me ajuda?
– Sim – falava com convicção – quando eu ficar maior e mais inteligente eu vou te ajudar sim…

E era assim, com uma grande inquietação, que eu passara a viver do lado dele, nunca querendo interferir em nada, mas ao mesmo tempo, desejando ter um significado por estar ali. Isto era de um equilíbrio extremamente complicado para mim. Somado a isso tudo, se tratava apenas de uma criança. Certos assuntos eram inadequados, ou pelo conteúdo ou pela compreensão. Teria de ser paciente e esperar que sua mente amadurecesse conforme o tempo. Mas de nenhuma sorte eu era ingrato para com ele, se não fosse o seu gesto, eu já não estaria mais aqui…

– 03 de Abril de 1990 Anno Domini – 15h54:

A visão ficou turva por uma fração de segundos, logo após um barulho metal colidindo contra o chão de pedra. Eram os latões de lixo próxima à quadra de esportes da praça. Duas pessoas nos ergueram do chão. Um filete quente de sangue passou por cima de um dos olhos, provindo da testa. O menino que estava na nossa frente desferiu outro soco e caímos desta vez sobre os latões já derrubados. Eram cinco no total. Outros dois estavam atrás de nós vigiando se tinha alguém por perto. Aquela já era a terceira vez.

– Tu te acha mais esperto do que nós não é, seu merdinha!? – falou o que tinha dado o golpe.

Imobilizado novamente pelos mesmos dois que nos juntaram do chão outrora, o mesmo menino já fechara o punho novamente na expectativa de acertar o próximo.

– Eu não te fiz nada! – meu amigo falou.
– Claro que tu não fez! Porque se tu tivesse feito algo aí sim tu iria apanhar muito mais! – disse o menino e mais uma vez fomos ao solo.
– Eu vou te surrar até eu me cansar e se tua família ficar sabendo eu venho te pegar todo o dia.

Depois da nona vez que caímos, o terror começou a tomar contornos mais definidos e senti meu amigo apavorado diante da perspectiva de apanhar todo o dia. Eu gritava com ele para ele tentar ficar calmo, que nós iríamos dar um jeito de fazer com que isso não acontecesse mais, mas com todo o corpo doendo, essa promessa parecia muito distante para considerar. O pavor foi aumentando, ele se debatia para tentar se desvencilhar dos dois que teimavam em segurá-lo, mas ele não conseguia. Ele já não falava quase mais nada e sua voz parecia mais distante. Já eu gritava cada vez mais alto mas estava começando a compreender que não mais me escutava. Senti sua presença cada vez mais fraca, como se ele tivesse se fechado apenas para o seu próprio mundinho. Até que em um determinado momento eu não sentia mais ele. Ele tinha sumido por completo. Eu estava sozinho…

CONTINUA…


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